‘Cicatrizes da Escravidão” e “Reinterpretando Silêncios”, livros publicados por Olga Pereira
Bem se sabe que, durante séculos, a
literatura foi um espaço de tradição e dominação masculina, reflexos que
são sentidos até hoje. No caso da mulher negra, além do gênero, ela
enfrenta outro preconceito, o de raça e, por vezes, o de classe. Faz
sentido, portanto, que tal contexto influencie diretamente na produção
literária de mulheres negras, não apenas no Rio Grande do Sul, como no
Brasil inteiro.
A escritora, pesquisadora e coordenadora de fomento às Ações Inclusivas do IFSUl (Instituto Federal Sul-Rio-Grandense/Pelotas), Olga Pereira, explica que o
período escravagista no Brasil “proliferou o vírus perverso” da
depreciação do negro e de sua intelectualidade. Com quatro livros
publicados, entre eles Cicatrizes da escravidão: da história ao silenciamento (Um2, 2015) e Reinterpretando silêncios: reflexões sobre a docência negra na cidade de Pelotas, (Nandyala, 2015), Olga diz
que reconhecer a ausência de referenciais escritos por mãos negras é
admitir o racismo como fator preponderante de negação da
intelectualidade desses sujeitos. “Em se tratando da mulher negra,
velhos pré-conceitos equivocados tendem a se duplicar velozmente, uma
vez que a cor da pele, historicamente conceituada pela erotização,
relega a intelectualidade dessas mulheres e, consequente, suas produções
literárias”, pontua.
Enquanto a reportagem era produzida, 18
universidades/instituições foram contatadas. Solicitei a indicação de
nomes de pesquisadoras (es) que pudessem comentar a respeito da escrita
produzida por autoras negras gaúchas. Daquelas que retornaram, apenas cinco
apontaram um nome – nenhum deles pertencente à faculdade de Letras da
universidade em questão. Isso não revela, entretanto, que não estejam
sendo apresentados trabalhos a respeito de escritoras negras brasileiras
ou estrangeiras. O que não consegui identificar foi um número
significativo de pesquisas e pessoas dedicadas a investigar as autoras
negras gaúchas e suas particularidades.
sopapop
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Lilian participa do sarau de poesia negra Sopapo Poético (Foto: Maia Rubim/Nonada)
Para a professora de Comunicação Daniela Santos,
que também atua no projeto de extensão Aruanda, da Feevale, ainda há
pouca representatividade da população negra no contexto acadêmico e,
consequentemente, poucos trabalhos produzidos sobre a literatura criada
por ela. Segundo a professora, enquanto a presença de negros e negras na
universidade for tímida, dificilmente serão apresentados estudos acerca
da realidade dessa população, que inclui a literatura. Daniela
esclarece que os frutos da política de cotas demorarão algum tempo para
serem colhidos, já que se trata de uma década frente a 500 anos de
história.
Contudo, Daniela não acredita que o
escasso debate da escrita de autoria negra deva-se à simples falta de
interesse em estudar estes autores e autoras. O
interesse sequer é possibilitado, em função da hegemonia cultural. “Uma
vez que a produção acadêmica e cultural ainda tem como referência e
como enunciador legítimo o homem heterossexual branco de classe média,
as vozes de outros grupos sociais seguem sendo tidas como dissonantes,
logo, são abafadas”, explica a professora.
De outro lado, Eliane Marques pensa
que a mulher negra deve se questionar sobre os lugares que quer ocupar. A
poeta diz que não é pelo fato de ser ‘a academia’ que deseja se inserir
ou ser reconhecida como tal nesse espaço. “Não é nenhuma crítica à
academia, mas ao fato de sermos promotoras da nossa própria posição na
sociedade. Não vou ficar dizendo ‘ah, não sou recebida na academia’. Nós
precisamos saber em que lugares queremos entrar. Parece que a mulher
negra fica numa posição passiva de esperar que seja reconhecida”,
adverte Eliane. Ela destaca que é possível construir os próprios espaços
e que a mulher negra seja protagonista da sua própria história. “Não
vamos esperar que nos abram as portas. Iremos abri-las e, se necessário,
arrombá-las”, conclui.
Sendo legitimada ou não, o fato é que
a literatura negro-brasileira (termo cunhado pelo escritor e
pesquisador Cuti) como um todo segue um caminho à parte do universo
acadêmico. Ações promovidas por bibliotecas públicas ou comunitárias,
seminários, livrarias mais plurais, projetos de resgate ou de promoção
de autoras negras multiplicam-se pelo Brasil. “Penso que é fundamental
contar com obras de escritoras negras em nossas livrarias e
bibliotecas”, diz Márcia Cavalcante, professora e fundadora da Ong Cirandar,
que atua no fortalecimento de bibliotecas comunitárias em Porto Alegre e
outras cidades do RS. “Primeiramente porque temos boa literatura, de
muita qualidade e que não são conhecidas, pois não há interesse ou
esforço em reconhecê-las como importantes. Segundo, porque quando isso
não acontece revela uma grande falha em relação a equidade de nossa
cultura, história e arte brasileira.”
A cidade de São Paulo conta com uma iniciativa bastante focada: a Livraria Africanidades, espaço que dialoga com matrizes afro-brasileiras e feministas. A proprietária, Ketty Valêncio,
enfatiza: “quem não é visto não é lembrado” e, para ela, quem aponta
este holofote é a academia. Porém, ressalta Ketty, para muitas/os, fazer
parte deste universo não é importante. “Felizmente a literatura
afro-brasileira sempre sobreviveu através do boca a boca, da militância e
de uma mídia independente que ajuda a divulgar, mas, mesmo assim,
algumas obras sofrem injustamente o apagamento pela história”, pondera.
Ketty conta ainda que ao participar de um evento como expositora realiza
um trabalho de abordagem. Precisa apresentar as obras e falar um pouco
sobre a biografia de cada escritor (a). “É notável o desconhecimento
desses escritos. Algumas obras literárias enegrecidas são vendidas em
grandes livrarias, mas o seu acervo eurocêntrico as engolem. No entanto,
o público cativo de literatura afro-brasileira e feminista consegue resgatá-la."
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